Um professor, durante a sua aula de filosofia sem dizer uma palavra, pega num frasco de maionese e esvazia-o...tirou a maionese e encheu-o com bolas de golf.
A seguir perguntou aos alunos se o Frasco estava cheio. Os estudantes responderam sim.
Então o professor pega numa caixa cheia de pedrinhas e mete-as no frasco de maionese. As pedrinhas encheram os espaços vazios entre as bolas de golf.
O professor voltou a perguntar aos alunos se o frasco estava cheio, e eles voltaram a dizer que sim.
Então...o professor pegou noutra caixa...uma caixa cheia de areia e esvaziou-a para dentro do frasco de maionese. Claro que a areia encheu todos os espaços vazios e uma vez mais o pofessor voltou a perguntar se o frasco estava cheio. Nesta ocasião os estudantes responderam em unânime "Sim !".
De seguida o professor acrescentou 2 xícaras de café ao frasco e claro que o café preencheu todos os espaços vazios entre a areia. Os estudantes nesta ocasião começaram a rir-se...mas repararam que o professor estava sério e disse-lhes:
'QUERO QUE SE DÊEM CONTA QUE ESTE FRASCO REPRESENTA A VIDA'.
As bolas de golf são as coisas Importantes:
como a FAMÍLIA, a SAÚDE, os AMIGOS, tudo o que você AMA DE VERDADE.
São coisas, que mesmo que se perdessemos todo o resto, nossas vidas continuariam cheias.
As pedrinhas são as outras coisas
que importam como: o trabalho, a casa, o carro, etc.
A areia é tudo o demais, as pequenas coisas.
'Se puséssemos 1º a areia no frasco, não haveria espaço para as pedrinhas nem para as bolas de golf.
O mesmo acontece com a vida'.
Se gastássemos todo o nosso tempo e energia nas coisas pequenas, nunca teríamos lugar para as coisas realmente importantes.
Preste atenção às coisas que são cruciais para a sua Felicidade.
Brinque ensinando os seus filhos,
Arranje tempo para ir ao medico,
Namore e vá com a sua/seu namorado(a)/marido/mulher jantar fora,
Dedique algumas horas para uma boa conversa e diversão com seus amigos
Pratique o seu esporte ou hobbie favorito.
Haverá sempre tempo para trabalhar, limpar a casa, arrumar o carro...
Ocupe-se sempre das bolas de golf 1º, que representam as coisas que realmente importam na sua vida.
Estabeleça suas prioridades, o resto é só areia...
Porém, um dos estudantes levantou a mão e perguntou o que representaria, então, o café.
O professor sorriu e disse:
"...o café é só para vos demonstrar, que não importa o quanto a nossa vida esteja ocupada, sempre haverá espaço para um café com um amigo. "
sábado, 5 de fevereiro de 2011
Nascer no Cairo, ser fêmea de cupim - Rubem Braga
Rubem Braga |
O leitor que responder "não sei" a todas estas perguntas não passará provavelmente em nenhuma prova de Português de nenhum concurso oficial. Alias, se isso pode servir de algum consolo à sua ignorância, receberá um abraço de felicitações deste modesto cronista, seu semelhante e seu irmão.
Porque a verdade é que eu também não sei. Você dirá, meu caro professor de Português, que eu não deveria confessar isso; que é uma vergonha para mim, que vivo de escrever, não conhecer o meu instrumento de trabalho, que é a língua.
Concordo. Confesso que escrevo de palpite, como outras pessoas tocam piano de ouvido. De vez em quando um leitor culto se irrita comigo e me manda um recorte de crônica anotado, apontando erros de Português. Um deles chegou a me passar um telegrama, felicitando-me porque não encontrara, na minha crônica daquele dia, um só erro de Português; acrescentava que eu produzira uma "página de bom vernáculo, exemplar". Tive vontade de responder: "Mera coincidência" — mas não o fiz para não entristecer o homem.
Espero que uma velhice tranqüila - no hospital ou na cadeia, com seus longos ócios — me permita um dia estudar com toda calma a nossa língua, e me penitenciar dos abusos que tenho praticado contra a sua pulcritude. (Sabem qual o superlativo de pulcro? Isto eu sei por acaso: pulquérrimo! Mas não é desanimador saber uma coisa dessas? Que me aconteceria se eu dissesse a uma bela dama: a senhora é pulquérrima? Eu poderia me queixar se o seu marido me descesse a mão?).
Alguém já me escreveu também — que eu sou um escoteiro ao contrário. "Cada dia você parece que tem de praticar a sua má ação — contra a língua". Mas acho que isso é exagero.
Como também é exagero saber o que quer dizer escardinchar. Já estou mais perto dos cinqüenta que dos quarenta; vivo de meu trabalho quase sempre honrado, gozo de boa saúde e estou até gordo demais, pensando em meter um regime no organismo — e nunca soube o que fosse escardinchar. Espero que nunca, na minha vida, tenha escardinchado ninguém; se o fiz, mereço desculpas, pois nunca tive essa intenção.
Vários problemas e algumas mulheres já me tiraram o sono, mas não o feminino de cupim. Morrerei sem saber isso. E o pior é que não quero saber; nego-me terminantemente a saber, e, se o senhor é um desses cavalheiros que sabem qual é o feminino de cupim, tenha a bondade de não me cumprimentar.
Por que exigir essas coisas dos candidatos aos nossos cargos públicos? Por que fazer do estudo da língua portuguesa uma série de alçapões e adivinhas, como essas histórias que uma pessoa conta para "pegar" as outras? O habitante do Cairo pode ser cairense, cairei, caireta, cairota ou cairiri — e a única utilidade de saber qual a palavra certa será para decifrar um problema de palavras cruzadas. Vocês não acham que nossos funcionários públicos já gastam uma parte excessiva do expediente matando palavras cruzadas da "Última Hora" ou lendo o horóscopo e as histórias em quadrinhos de "O Globo?".
No fundo o que esse tipo de gramático deseja é tornar a língua portuguesa odiosa; não alguma coisa através da qual as pessoas se entendam, mas um instrumento de suplício e de opressão que ele, gramático, aplica sobre nós, os ignaros.
Mas a mim é que não me escardincham assim, sem mais nem menos: não sou fêmea de cupim nem antônimo do póstumo nenhum; e sou cachoeirense, de Cachoeiro, honradamente — de Cachoeiro de Itapemirim!
Rio, novembro, 1951
Texto extraído do livro "Ai de Ti, Copacabana", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1960, pág. 197.
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O FAX DO NIRSO
UM GERENTE DE VENDAS RECEBEU O SEGUINTE FAX DE UM DOS SEUS NOVOS
VENDEDORES:
"SEO GOMIS, O CRIENTE DE BELZONTE PIDIU MAIS CUATRUCENTA PESSA. FAZ FAVOR TOMÁ AS PROVIDENSSA. ABRASSO, NIRSO."
APROXIMADAMENTE UMA HORA DEPOIS, RECEBEU OUTRO:
"SEO GOMIS, OS RELATÓRIO DI VENDA VAI XEGÁ ATRAZADO PROQUE TÁ FEXANDO UMAS VENDA. TEMO QUE MANDA TREIS MIL PESSA. AMANHÃ TÁ XEGANDO. ABRASSO, NIRSO."
NO DIA SEGUINTE:
"SEO GOMIS, NUM XEGUEI PUCAUSA DE QUE VENDI MAIS DEIS MIL EM BERABA. TÔ INDO PRA BRAZILHA. ABRASSO, NIRSO."
NO OUTRO:
"SEO GOMIS, BRAZILHA FEXÔ 20 MIL. VÔ PRA FROLINOPOLIS E DE LÁ PRA SUM
PAULO NO VINHÃO DAS CETE HORA. ABRASSO, NIRSO."
E ASSIM FOI O MÊS INTEIRO. O GERENTE, MUITO PREOCUPADO COM A IMAGEM DA EMPRESA, LEVOU AO PRESIDENTE AS MENSAGENS QUE RECEBEU DO VENDEDOR.
O PRESIDENTE ESCUTOU ATENTAMENTE O GERENTE E DISSE:
"DEIXA COMIGO, QUE EU TOMAREI AS PROVIDÊNCIAS NECESSÁRIAS."
E TOMOU...
REDIGIU DE PRÓPRIO PUNHO UM AVISO E O AFIXOU NO MURAL DA EMPRESA,
JUNTAMENTE
COM AS MENSAGENS DE FAX DO VENDEDOR:
"A PARTI DE OJE NOIS TUDO VAMO FAZÊ FEITO O NIRSO. SI PRIOCUPÁ MENOS EM ISCREVÊ SERTO, PRÁ MÓ D VENDÊ MAIZ."
ACINADO, O PRIZIDENTI.
VENDEDORES:
"SEO GOMIS, O CRIENTE DE BELZONTE PIDIU MAIS CUATRUCENTA PESSA. FAZ FAVOR TOMÁ AS PROVIDENSSA. ABRASSO, NIRSO."
APROXIMADAMENTE UMA HORA DEPOIS, RECEBEU OUTRO:
"SEO GOMIS, OS RELATÓRIO DI VENDA VAI XEGÁ ATRAZADO PROQUE TÁ FEXANDO UMAS VENDA. TEMO QUE MANDA TREIS MIL PESSA. AMANHÃ TÁ XEGANDO. ABRASSO, NIRSO."
NO DIA SEGUINTE:
"SEO GOMIS, NUM XEGUEI PUCAUSA DE QUE VENDI MAIS DEIS MIL EM BERABA. TÔ INDO PRA BRAZILHA. ABRASSO, NIRSO."
NO OUTRO:
"SEO GOMIS, BRAZILHA FEXÔ 20 MIL. VÔ PRA FROLINOPOLIS E DE LÁ PRA SUM
PAULO NO VINHÃO DAS CETE HORA. ABRASSO, NIRSO."
E ASSIM FOI O MÊS INTEIRO. O GERENTE, MUITO PREOCUPADO COM A IMAGEM DA EMPRESA, LEVOU AO PRESIDENTE AS MENSAGENS QUE RECEBEU DO VENDEDOR.
O PRESIDENTE ESCUTOU ATENTAMENTE O GERENTE E DISSE:
"DEIXA COMIGO, QUE EU TOMAREI AS PROVIDÊNCIAS NECESSÁRIAS."
E TOMOU...
REDIGIU DE PRÓPRIO PUNHO UM AVISO E O AFIXOU NO MURAL DA EMPRESA,
JUNTAMENTE
COM AS MENSAGENS DE FAX DO VENDEDOR:
"A PARTI DE OJE NOIS TUDO VAMO FAZÊ FEITO O NIRSO. SI PRIOCUPÁ MENOS EM ISCREVÊ SERTO, PRÁ MÓ D VENDÊ MAIZ."
ACINADO, O PRIZIDENTI.
O colocador de pronomes – Monteiro Lobato
Monteiro Lobato |
Durante sessenta anos de vida terrena pererecou como um peru em cima da gramática.
E morreu, afinal, vítima dum novo erro de gramática.
Martir da gramática, fique este documento da sua vida como pedra angular para uma futura e bem merecida canonização,
Havia em Itaoca um pobre moço que definhava de tédio no fundo de um cartório. Escrevente. Vinte e três anos. Magro. Ar um tanto palerma. Ledor de versos lacrimogêneos e pai duns acrósticos dados à luz no “Itaoquense” , com bastante sucesso.
Vivia em paz com as suas certidões quando o frechou venenosa seta de Cupido. Objeto amado: a filha mais moça do coronel Triburtino, o qual tinha duas, essa Laurinha, do escrevente, então nos dezessete, e a do Carmo, encalhe da família, vesga, madurota, histérica, manca da perna esquerda e um tanto aluada.
Triburtino não era homem de brincadeira. Esguelara um vereador oposicionista em plena sessão da câmara e desd’aí se transformou no tutú da terra. Toda gente lhe tinha um vago medo; mas o amor, que é mais forte que a morte, não receia sobrecenhos enfarruscados nem tufos de cabelos no nariz.
Ousou o escrevente namorar-lhe a filha, apesar da distância hierárquica que os separava. Namoro à moda velha, já se vê, pois que nesse tempo não existia a gostorura dos cinemas. Encontros na igreja, à missa, troca de olhares, diálogos de flores – o que havia de inocente e puro. Depois, roupa nova, ponta de lenço de seda a entremostrar-se no bolsinho de cima e medição de passos na rua d’Ela, nos dia de folga. Depois, a serenata fatal à esquina, com o
Acorda, donzela…
Sapecado a medo num velho pinho de empréstimo. Depois, bilhetinho perfumado.
Aqui se estrepou…
Escrevera nesse bilhetinho, entretanto, apenas quatro palavras, afora pontos exclamativos e reticências:
Anjo adorado!
Amo-lhe!
Para abrir o jogo bastava esse movimento de peão. Ora, aconteceu que o pai do anjo apanhou o bilhetinho celestial e, depois de três dias de sobrecenho carregado, mandou chamá-lo à sua presença, com disfarce de pretexto – para umas certidõesinhas, explicou.
Apesar disso o moço veio um tanto ressabiado, com a pulga atrás da orelha.
Não lhe erravam os pressentimentos. Mas o pilhou portas aquém, o coronel trancou o escritório, fechou a carranca e disse:
- A família Triburtino de Mendonça é a mais honrada desta terra, e eu, seu chefe natural, não permitirei nunca – nunca, ouviu? – que contra ela se cometa o menor deslize.
Parou. Abriu uma gaveta. Tirou de dentro o bilhetinho cor de rosa, desdobrou-o
- É sua esta peça de flagrante delito?
O escrevente, a tremer, balbuciou medrosa confirmação.
- Muito bem! Continuou o coronel em tom mais sereno. Ama, então, minha filha e tem a audácia de o declarar… Pois agora…
O escrevente, por instinto, ergueu o braço para defender a cabeça e relanceou os olhos para a rua, sondando uma retirada estratégica.
- … é casar! Concluiu de improviso o vingativo pai.
O escrevente ressuscitou. Abriu os olhos e a boca, num pasmo. Depois, tornando a si, comoveu-se e com lágrimas nos olhos disse, gaguejante:
- Beijo-lhe as mãos, coronel! Nunca imaginei tanta generosidade em peito humano! Agora vejo com que injustiça o julgam aí fora!…
Velhacamente o velho cortou-lhe o fio das expansões.
- Nada de frases, moço, vamos ao que serve: declaro-o solenemente noivo de minha filha!
E voltando-se para dentro, gritou:
- Do Carmo! Venha abraçar o teu noivo!
O escrevente piscou seis vezes e, enchendo-se de coragem, corrigiu o erro.
- Laurinha, quer o coronel dizer…
O velho fechou de novo a carranca.
- Sei onde trago o nariz, moço. Vassuncê mandou este bilhete à Laurinha dizendo que ama-”lhe”. Se amasse a ela deveria dezer amo-”te”. Dizendo “amo-lhe” declara que ama a uma terceira pessoa, a qual não pode ser senão a Maria do Carmo. Salvo se declara amor à minha mulher…
- Oh, coronel…
- … ou a preta Luzia, cozinheira. Escolha!
O escrevente, vencido, derrubou a cabeça com uma lágrima a escorrer rumo à asa do nariz. Silenciaram ambos, em pausa de tragédia. Por fim o coronel, batendo-lhe no ombro paternalmente, repetiu a boa lição da gramática matrimonial.
- Os pronomes, como sabe, são três: da primeira pessoa – quem fala, e neste caso vassuncê; da Segunda pessoa – a quem fala, e neste caso Laurinha; da terceira pessoa – de quem se fala, e neste caso do Carmo, minha mulher ou a preta. Escolha!
Não havia fuga possível.
O escrevente ergueu os olhos e viu do Carmo que entrava, muito lampeira da vida, torcendo acanhada a ponta do avental. Viu também sobre a secretária uma garrucha com espoleta nova ao alcance do maquiavélico pai, submeteu-se e abraçou a urucaca, enquanto o velho, estendendo as mãos, dizia teatralmente:
- Deus vos abençoe, meus filhos!
No mês seguinte, e onze meses depois vagia nas mãos da parteira o futuro professor Aldrovando, o conspícuo sabedor de língua que durante cinqüenta anos a fio coçaria na gramática a sua incurável sarna filológica.
Até aos dez anos não revelou Aldrovando pinta nenhuma. Menino vulgar, tossiu a coqueluche em tempo próprio, teve o sarampo da praxe, mas a cachumba e a catapora. Mais tarde, no colégio, enquanto os outros enchiam as horas de estudo com invenções de matar o tempo – empalamento de moscas e moidelas das respectivas cabecinhas entre duas folhas de papel, coisa de ver o desenho que saía – Aldrovando apalpava com erótica emoção a gramática de Augusto Freire da Silva. Era o latejar do furúnculo filológico que o determinaria na vida, para matá-lo, afinal…
Deixêmo-lo, porém, evoluir e tomêmo-lo quando nos serve, aos 40 anos, já a descer o morro, arcado ao peso da ciência e combalido de rins. Lá está ele em seu gabinete de trabalho, fossando à luza dum lampião os pronomes de Filinto Elísio. Corcovado, magro, seco, óculos de latão no nariz, careca, celibatário impenitente, dez horas de aulas por dia, duzentos mil réis por mês e o rim volta e meia a fazer-se lembrado.
Já leu tudo. Sua vida foi sempre o mesmo poento idílio com as veneráveis costaneiras onde cabeceiam os clássicos lusitanos. Versou-os um por um com mão diurna e noturna. Sabe-os de cór, conhece-os pela morrinha, distingue pelo faro uma séca de Lucena duma esfalfa de Rodrigues Lobo. Digeriu todas as patranhas de Fernão Mendes Pinto. Obstruiu-se da broa encruada de Fr. Pantaleão do Aveiro. Na idade em que os rapazes correm atrás das raparigas, Aldrovando escabichava belchiores na pista dos mais esquecidos mestres da boa arte de maçar. Nunca dormiu entre braços de mulher. A mulher e o amor – mundo, diabo e carne eram para ele os alfarrábios freiráticos do quinhentismo, em cuja soporosa verborréia espapaçava os instintos lerdos, como porco em lameiro.
Em certa época viveu três anos acampado em Vieria. Depois vagabundeou, como um Robinson, pelas florestas de Bernardes.
Aldrovando nada sabia do mundo atual. Desprezava a natureza, negava o presente. Passarinho conhecia um só: o rouxinol de Bernadim Ribeiro. E se acaso o sabiá de Gonçalves Dias vinha citar “pomos de Hesperides” na laranjeira do seu quintal, Aldrovando esfogueteava-o com apostrofes:
- Salta fora, regionalismo de má sonância!
A língua lusa era-lhe um tabu sagrado que atingira a perfeição com Fr. Luiz de Sousa, e daí para cá, salvo lucilações esporádicas, vinha chafurdando no ingranzéu barbaresco.
- A ingresia d’hoje, declamava ele, está para a Língua, como o cadáver em putrefação está para o corpo vivo.
E suspirava, condoído dos nossos destinos:
- Povo sem língua!… Não me sorri o futuro de Vera-Cruz…
E não lhe objetassem que a língua é organismo vivo e que a temos a evoluir na boca do povo.
- Língua? Chama você língua à garabulha bordalenga que estampam periódicos? Cá está um desses galicígrafos. Deletreemo-lo ao acaso.
E, baixando as cangalhas, lia:
- Teve lugar ontem… É língua esta espurcícia negral? Ó meu seráfico Frei Luiz, como te conspurcam o divino idioma estes sarrafaçais da moxinifada!
- … no Trianon… Por que, Trianon? Por que este perene barbarizar com alienígenos arrevesos? Tão bem ficava – a Benfica, ou, se querem neologismo de bom cunho o Logratório…Tarelos é que são, tarelos!
E suspirava deveras compungido.
- Inútil prosseguir. A folha inteira cacografa-se por este teor. Aí! Onde param os boas letras d’antanho? Fez-se peru o níveo cisne. Ninguém atende à lei suma – Horácio! Impera o desprimor, e o mau gosto vige como suprema regra. A gálica intrujice é maré sem vazante. Quando penetro num livreiro o coração se me confrange ante o pélago de óperas barbarescas que nos vertem cá mercadores de má morte. E é de notar, outrossim, que a elas se vão as preferências do vulgacho. Muito não faz que vi com estes olhos um gentil mancebo preferir uma sordície de Oitavo Mirbelo, Canhenho duma dama de servir, (1) creio, à… advinhe ao que, amigo? A Carta de Guia do meu divino Francisco Manoel!…
- Mas a evolução…
- Basta. Conheço às sobejas a escolástica da época, a “evolução” darwinica, os vocábulos macacos – pitecofonemas que “evolveram”, perderam o pelo e se vestem hoje à moda de França, com vidro no olho. Por amor a Frei Luiz, que ali daquela costaneira escandalizado nos ouve, não remanche o amigo na esquipática sesquipedalice.
Um biógrafo ao molde clássico separaria a vida de Aldrovando em duas fases distingas: a estática, em que apenas acumulou ciência, e a dinâmica, em que, transfeito em apóstolo, veio a campo com todas as armas para contrabater o monstro da corrupção.
Abriu campanha com memorável ofício ao congresso, pedindo leis repressivas contra os ácaros do idioma.
- “Leis, senhores, leis de Dracão, que diques sejam, e fossados, e alcaçares de granito prepostos à defensão do idioma. Mister sendo, a forca se restaure, que mais o baraço merece quem conspurca o sacro patrimônio da sã vernaculidade, que quem ao semelhante a vida tira. Vêde, senhores, os pronomes, em que lazeira jazem…
Os pronomes, aí! Eram a tortura permanente do professor Aldrovando. Doía-lhe como punhalada vê-los por aí pré ou pospostos contra-regras elementares do dizer castiço. E sua representação alargou-se nesse pormenor, flagelante, concitando os pais da pátria à criação dum Santo Ofício gramatical.
Os ignaros congressistas, porém, riram-se da memória, e grandemente piaram sobre Aldrovando as mais cruéis chalaças.
- Quer que instituamos patíbulo para os maus colocadores de pronomes! Isto seria auto-condenar-nos à morte! Tinha graça!
Também lhe foi à pele a imprensa, com pilhérias soezes. E depois, o público. Ninguém alcançara a nobreza do seu gesto, e Aldrovando, com a mortificação n’alma, teve que mudar de rumo. Planeou recorrer ao púlpito dos jornais. Para isso mister foi, antes de nada, vencer o seu velho engulho pelos “galicígrafos de papel e graxa”. Transigiu e, breve, desses “pulmões da pública opinião” apostrofou o país com o verbo tonante de Ezequiel. Encheu colunas e colunas de objurgatórias ultra violentas, escritas no mais estreme vernáculo.
Mas não foi entendido. Raro leitor metia os dentes naqueles intermináveis períodos engrenados à moda de Lucena; e ao cabo da aspérrima campanha viu que pregara em pleno deserto. Leram-no apenas a meia dúzia de Aldrovandos que vegetam sempre em toda parte, como notas rezinguentas da sinfonia universal.
A massa dos leitores, entretanto, essa permaneceu alheia aos flamívomos pelouros da sua colubrina sem raia. E por fim os “periódicos” fecharam-lhe a porta no nariz, alegando falta de espaço e coisas.
- Espaço não há para as sãs idéias, objurgou o enxotado, mas sobeja, e pressuroso, para quanto recende à podriqueira!… Gomorra! Sodoma! Fogos do céu virão um dia alimpar-vos a gafa!… exclamou, profético, sacudindo à soleira da redação o pó das cambaias botinas de elástico.
Tentou em seguida ação mais direta, abrindo consultório gramatical.
- Têm-nos os físicos (queria dizer médicos), os doutores em leis, os charlatãs de toda espécie. Abra-se um para a medicação da grande enferma, a língua. Gratuito, já se vê, que me não move amor de bens terrenos.
Falhou a nova tentativa. Apenas moscas vagabundas vinham esvoejar na salinha modesta do apóstolo. Criatura humana nem uma só lá apareceu afim de remendar-se filologicamente.
Ele, todavia, não esmoreceu.
- Experimentemos processo outro, mais suasório.
E anunciou a montagem da “Agência de Colocação de Pronômes e Reparos Estilísticos”.
Quem tivesse um autógrafo a rever, um memorial a expungir de cincas, um calhamaço a compor-se com os “afeites” do lídimo vernáculo, fosse lá que, sem remuneração nenhuma, nele se faria obra limpa e escorreita.
Era boa a idéia, e logo vieram os primeiros originais necessitados de ortopedia, sonetos a consertar pés de verso, ofícios ao governo pedindo concessões, cartas de amor.
Tais, porém, eram as reformas que nos doentes operava Aldrovando, que os autores não mais reconheciam suas próprias obras. Um dos clientes chegou a reclamar.
- Professor, v. s. enganou-se. Pedi limpa de enxada nos pronomes, mas não que me traduzisse a memória em latim…
Aldrovando empertigou-se.
- Pois, amigo, errou de porta. Seu caso é alí com o alveitar da esquina.
Pouco durou a Agência, morta à míngua de clientes. Teimava o povo em permanecer empapado no chafurdeiro da corrupção…
O rosário de insucessos, entretanto, em vez de desalentar exasperava o apóstolo.
- Hei-de influir na minha época. Aos tarelos hei de vencer. Fogem-me à férula os maráus de pau e corda? Ir-lhes-ei empós, fila-los-eis pela gorja… Salta rumor!
E foi-lhes “empós”, Andou pelas ruas examinando dísticos e tabuletas com vícios de língua. Descoberta a “asnidade”, ia ter com o proprietário, contra ele desfechando os melhores argumentos catequistas.
Foi assim com o ferreiro da esquina, em cujo portão de tenda uma tabuleta – “Ferra-se cavalos” – escoicinhava a santa gramática.
- Amigo, disse-lhe pachorrentamente Aldrovando, natural a mim me parece que erre, alarve que és. Se erram paredros, nesta época de ouro da corrupção…
O ferreiro pôs de lado o malho e entreabriu a boca.
- Mas da boa sombra do teu focinho espero, continuou o apóstolo, que ouvidos me darás. Naquela tábua um dislate existe que seriamente à língua lusa ofende. Venho pedir-te, em nome do asseio gramatical, que o expunjas.
- ? ? ?
- Que reformes a tabuleta, digo.
- Reformar a tabuleta? Uma tabuleta nova, com a licença paga? Estará acaso rachada?
- Fisicamente, não. A racha é na sintaxe. Fogem ali os dizeres à sã gramaticalidade.
O honesto ferreiro não entendia nada de nada.
- Macacos me lambam se estou entendendo o que v. s. diz…
- Digo que está a forma verbal com eiva grave. O “ferra-se” tem que cair no plural, pois que a forma é passiva e o sujeito é “cavalos”.
O ferreiro abriu o resto da boca.
- O sujeito sendo “cavalos”, continuou o mestre, a forma verbal é “ferram-se” – “ferram-se cavalos!”
- Ahn! Respondeu o ferreiro, começo agora a compreender. Diz v. s. que …
- … que “ferra-se cavalos” é um solecismo horrendo e o certo é “ferram-se cavalos”.
- V. S. me perdoe, mas o sujeito que ferra os cavalos sou eu, e eu não sou plural. Aquele “se” da tabuleta refere-se cá a este seu criado. É como quem diz: Serafim ferra cavalos – Ferra Serafim cavalos. Para economizar tinta e tábua abreviaram o meu nome, e ficou como está: Ferra Se (rafim) cavalos. Isto me explicou o pintor, e entendi-o muito bem.
Aldrovando ergueu os olhos para o céu e suspirou.
- Ferras cavalos e bem merecias que te fizessem eles o mesmo!… Mas não discutamos. Ofereço-te dez mil réis pela admissão dum “m” ali…
- Se V. S. paga…
Bem empregado dinheiro! A tabuleta surgiu no dia seguinte dessolecismada, perfeitamente de acordo com as boas regras da gramática. Era a primeira vitória obtida e todas as tardes Aldrovando passava por lá para gozar-se dela
Por mal seu, porém, não durou muito o regalo. Coincidindo a entronização do “m” com maus negócios na oficina, o supersticioso ferreiro atribuiu a macaca à alteração dos dizeres e lá raspou o “m” do professor.
A cara que Aldrovando fez quando no passeio desse dia deu com a vitória borrada! Entrou furioso pela oficina a dentro, e mascava uma apóstrofe de fulminar quando o ferreiro, às brutas, lhe barrou o passo.
- Chega de caraminholas, ó barata tonta! Quem manda aqui, no serviço e na língua, sou eu. E é ir andando antes que eu o ferre com bom par de ferros ingleses!
O mártir da língua meteu a gramática entre as pernas e moscou-se.
- “Sancta simplicitas!” ouviram-no murmurar na rua, de rumo à casa, em busca das consolações seráficas de Fr. Heitor Pinto. Chegado que foi ao gabinete de trabalho, caiu de borco sobre as costaneiras venerandas e não mais conteve as lágrimas, chorou…
O mundo estava perdido e os homens, sobre maus, eram impenitentes. Não havia desviá-los do ruim caminho, e ele, já velho, com o rim a rezingar, não se sentia com forças para a continuação da guerra.
- Não hei-de acabar, porém, antes de dar a prelo um grande livro onde compendie a muita ciência que hei acumulado.
E Aldrovando empreendeu a realização de um vastíssimo programa de estudos filológicos. Encabeçaria a série um tratado sobre a colocação dos pronomes, ponto onde mais claudicava a gente de Gomorra.
Fê-lo, e foi feliz nesse período de vida em que, alheio ao mundo, todo se entregou, dia e noite, à obra magnífica. Saiu trabuco volumoso, que daria três tomos de 500 páginas cada um, corpo miúdo. Que proventos não adviriam dali para a lusitanidade. Todos os casos resolvidos para sempre, todos os homens de boa vontade salvos da gafaria! O ponto fraco do brasileiro falar resolvido de vez! Maravilhosa coisa…
Pronto o primeiro tomo – Do pronome Se – anunciou a obra pelos jornais, ficando à espera das chusmas de editores que viriam disputá-la à sua porta. E por uns dias o apóstolo sonhou as delícias da estrondosa vitória literária, acrescida de gordos proventos pecuniários.
Calculava em oitenta contos o valor dos direitos autorais, que, generoso que era, cederia por cinqüenta. E cinqüenta contos para um velho celibatário como ele, sem família nem vícios, tinha a significação duma grande fortuna. Empatados em empréstimos hipotecários sempre eram seus quinhentos mil réis por mês de renda, a pingarem pelo resto da vida na gavetinha onde, até então, nunca entrara pelega maior de duzentos. Servia, servia!… E Aldrovando, contente, esfregava as mãos de ouvido alerta, preparando frases para receber o editor que vinha vindo…
Que vinha vindo mas não veio, aí!… As semanas se passaram sem que nenhum representante dessa miserável fauna de judeus surgisse a chatinar o maravilhoso livro.
- Não me vêm a mim? Salta rumor! Pois me vou a eles!
E saiu em via sacra, a correr todos os editores da cidade.
Má gente! Nenhum lhe quis o livro sob condições nenhumas. Torciam o nariz, dizendo “Não é vendável”; ou: “Porque não faz antes uma cartilha infantil aprovada pelo governo?
Aldrovando, com a morte n’alma e o rim dia a dia mais derrancado, retesou-se nas últimas resistências.
- Fá-la-ei imprimir à minha custa! Ah, amigos! Aceito o cartel. Sei pelejar com todas as armas e irei até ao fim. Bofé!
Para lugar era mister dinheiro e bem pouco do vilíssimo metal possuía na arca o alquebrado Aldrovando. Não importa! Faria dinheiro, venderia móveis, imitaria Bernardo de Pallissy, não morreria sem ter o gosto de acaçapar Gomorra sob o peso da sua ciência impressa. Editaria ele mesmo um por um todos os volumes da obra salvadora.
Disse e fez.
Passou esse período de vida alternando revisão de provas com padecimentos renais. Venceu. O livro compôs-se, magnificamente revisto, primoroso na linguagem como não existia igual.
Dedicou-o a Fr. Luz de Souza:
À memória daquele que me sabe as dores,
O Autor.
Mas não quis o destino que o já trêmulo Aldrovando colhesse os frutos de sua obra. Filho dum pronome impróprio, a má colocação doutro pronome lhe cortaria o fio da vida.
Muito corretamente havia ele escrito na dedicatória: …daquele que me sabe… e nem poderia escrever doutro modo um tão conspícuo colocador de pronomes. Maus fados intervieram, porém – até os fados conspiram contra a língua! – e por artimanha do diabo que os rege empastelou-se na oficina esta frase. Vai o tipógrafo e recompõe-na a seu modo …d’aquele que sabe-me as dores… E assim saiu nos milheiros de cópias da avultada edição.
Mas não antecipemos.
Pronta a obra e paga, ia Aldrovando recebê-la, enfim. Que glória! Construíra, finalmente, o pedestal da sua própria imortalidade, ao lado direito dos sumos cultores da língua.
A grande idéia do livro, exposta no capítulo VI – Do método automático de bem colocar os pronomes – engenhosa aplicação duma regra mirífica por meio da qual até os burros de carroça poderiam zurrar com gramática, operaria como o “914″ da sintaxe, limpando-a da avariose produzida pelo espiroqueta da pronominuria.
A excelência dessa regra estava em possuir equivalentes químicos de uso na farmacopéia alopata, de modo que a um bom laboratório fácil lhe seria reduzí-la a ampolas para injeções hipodérmicas, ou a pílulas, pós ou poções para uso interno.
E quem se injetasse ou engolisse uma pípula do futuro PRONOMINOL CANTAGALO, curar-se-ia para sempre do vício, colocando os pronomes instintivamente bem, tanto no falar como no escrever. Para algum caso de pronomorreia agudo, evidentemente incurável, haveria o recurso do PRONOMINOL Nº 2, onde entrava a estriquinina em dose suficiente para libertas o mundo do infame sujeito.
Que glória! Aldrovando prelibava essas delícias todas quando lhe entrou casa a dentro a primeira carroçada de livros. Dois brutamontes de mangas arregaçadas empilharam-nos pelos cantos, em rumas que lá se iam; e concluso o serviço um deles pediu:
- Me dá um mata-bicho, patrão!
Aldrovando severizou o semblante ao ouvir aquele “Me” tão fora dos mancais, e tomando um exemplo da obra ofertou-a ao “doente”.
- Toma lá. O mau bicho que tens no sangue morrerá asinha às mãos deste vermífugo. Recomendo-te a leitura do capítulo sexto.
O carroceiro não se fez rogar; saiu com o livro, dizendo ao companheiro:
- Isto no “sebo” sempre renderá cinco tostões. Já serve!
Mal se sumiram, Aldrovando abancou-se à velha mesinha de trabalho e deu começo à tarefa de lançar dedicatórias num certo número de exemplares destinados à crítica. Abriu o primeiro, e estava já a escrever o nome de Rui Barbosa quando seus olhos deram com a horrenda cinca:
“daquele QUE SABE-ME as dores”.
- Deus do céu! Será possível?
Era possível. Era fato. Naquele, como em todos os exemplares da edição, lá estava, no hediondo relevo da dedicatória a Fr. Luiz de Souza, o horripilantíssimo
- “que sabe-me”…
Aldrovando não murmurou palavra. De olhos muito abertos, no rosto uma estranha marca de dor – dor gramatical inda não descrita nos livros de patologia – permaneceu imóvel uns momentos.
Depois empalideceu. Levou as mãos ao abdômen e estorceu-se nas garras de repentina e violentíssima ânsia.
Ergueu os olhos para Frei Luiz de Souza e murmurou:
- Luiz! Luiz! Lamma Sabachtani?!
E morreu.
De que não sabemos – nem importa ao caso. O que importa é proclamarmos aos quatro ventos que com Aldrovando morreu o primeiro santo da gramática, o mártir número um da Colocação dos Pronomes.
Paz à sua alma.
1920
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O colocador de pronomes
Aula de português - Carlos Drummond de Andrade
Carlos Drummond de Andrade |
na ponta da língua,
tão fácil de falar
e de entender.
A linguagem
na superfície estrelada de letras,
sabe lá o que ela quer dizer?
Professor Carlos Góis, ele é quem sabe,
e vai desmatando
o amazonas de minha ignorância.
Figuras de gramática, esquipáticas,
atropelam-me, aturdem-me, seqüestram-me.
Já esqueci a língua em que comia,
em que pedia para ir lá fora,
em que levava e dava pontapé,
a língua, breve língua entrecortada
do namoro com a prima.
O português são dois; o outro, mistério.
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Carlos Drummond de Andrade
O Abridor de Latas - um conto escrito inteiramente em câmara lenta - Millôr Fernandes
Quando esta história se inicia já se passaram quinhentos anos, tal a lentidão com que ela é narrada. Estão sentadas à beira de uma estrada três tartarugas jovens, com 800 anos cada uma, uma tartaruga velha com 1200 anos, e uma tartaruga bem pequenininha ainda, com apenas 85 anos. As cinco tartarugas estão sentadas, dizia eu. E dizia-o muito bem, pois elas estão sentadas mesmo. Vinte e oito anos depois do começo desta história a tartaruga mais velha abriu a boca e disse:
-Que tal se fizéssemos alguma coisa para quebrar a monotonia desta vida?
-Formidável - disse a tartaruguinha mais nova 12 anos depois - Vamos fazer um piquenique?
Vinte e cinco anos depois as tartarugas se decidiram a realizar o piquenique. Quarenta anos depois, tendo comprado algumas dezenas de latas de sardinhas e várias dúzias de refrigerantes, elas partiram. Oitenta anos depois chegaram a um lugar mais ou menos aconselhável para um piquenique.
-Ah - disse a tartaruguinha, 8 anos depois - excelente local este!
Sete anos depois todas as tartarugas tinham concordado. Quinze anos se passaram e, rapidamente, elas tinham arrumado tudo para o convescote. Mas, súbito, três anos depois, elas perceberam que faltava o abridor de latas para as sardinhas.
Discutiram e, ao fim de vinte anos, chegaram à conclusão de que a tartaruga menor devia ir buscar o abridor de latas.
-Está bem - concordou a tartaruguinha três anos depois - mas só vou se vocês prometerem que não tocam em nada enquanto eu não voltar.
Dois anos depois as tartarugas concordaram imediatamente que não tocariam em nada, nem no pão nem nos doces. E a tartaruguinha partiu.
Passaram-se cinquenta anos e a tartaruguinha não apareceu. As outras continuavam esperando. Mais 17 anos e nada. Mais oito anos e nada ainda. Afinal uma das tartarugas murmurou:
-Ela está demorando muito. Vamos comer alguma coisa enquanto ela não vem?
As outras não concordaram, rapidamente, dois anos depois. E esperaram mais 17 anos. Aí outra tartaruga disse:
-Já estou com muita fome. Vamos comer só um pedacinho de doce que ela nem notará.
As outras tartarugas hesitaram um pouco mas, 15 anos depois, acharam que deviam esperar pela outra. E se passou mais um século nessa espera. Afinal a tartaruga mais velha não pôde mesmo e disse:
-Ora, vamos comer mesmo só uns docinhos enquanto ela não vem.
Como um raio as tartarugas caíram sobre os doces seis meses depois. E justamente quando iam morder o doce ouviram um barulho no mato por detrás delas e a tartaruguinha mais jovem apareceu:
-Ah - murmurou ela - eu sabia, eu sabia que vocês não cumpririam o prometido e por isso fiquei escondida atrás da árvore. Agora eu não vou mais buscar o abridor, pronto!
FIM (trinta anos depois)
Nóis mudemo - Fidêncio Bogo
O ônibus da Transbrasiliana deslizava manso pela Belém-Brasília rumo a Porto Nacional. Era abril, mês das derradeiras chuvas. No céu, uma luazona enorme pra namorado nenhum botar defeito. Sob o luar generoso, o cerrado verdejante era um presépio, toda poesia e misticismo.
Mas minha alma estava profundamente amargurada. O encontro daquela tarde, a visão daquele jovem marcado pelo sofrimento, precocemente envelhecido, a crua recordação de um episódio que parecia tão banal... Tentei dormir. Inútil. Meus olhos percorriam a paisagem enluarada, mas ela nada mais era para mim que o pano de fundo de um drama estúpido e trágico.
As aulas tinham começado numa segunda-feira. Escola de periferia, classes heterogêneas, retardatários. Entre eles, uma criança crescida, quase um rapaz.
- Por que você faltou esses dias todos?
- É que nóis mudemo onti, fessora. Nóis veio da fazenda. Risadinhas da turma.
- Não se diz "nóis mudemo", menino! A gente deve dizer: nós mudamos, tá?
-Tá, fessora!
No recreio, as chacotas dos colegas: Oi, nóis mudemo! Até amanhã, nóis mudemo! No dia seguinte, a mesma coisa: risadinhas, cochichos, gozações.
- Pai, não vô mais pra escola!
- Oxente! Módi quê?
Ouvida a história, o pai coçou a cabeça e disse:
- Meu fio, num deixa a escola por uma bobagem dessa! Não liga pras gozações da mininada! Logo eles esquece.
Não esqueceram. Na quarta-feira, dei pela falta do menino. Ele não apareceu no resto da semana, nem na segunda-feira seguinte. Aí me dei conta de que eu nem sabia o nome dele. Procurei no diário de classe e soube que se chamava Lúcio - Lúcio Rodrigues Barbosa. Achei o endereço. Longe, um dos últimos casebres do bairro. Fui lá, uma tarde. O rapazola tinha partido no dia anterior para a casa de um tio, no sul do Pará.
- É, professora, meu fio não aguentou as gozação da mininada. Eu tentei fazê ele continuá, mas não teve jeito. Ele tava chatiado demais. Bosta de vida! Eu devia di té ficado na fazenda côa famia. Na cidade nóis não tem veis. Nóis fala tudo errado.
Inexperiente, confusa, sem saber o que dizer, engoli em seco e me despedi. O episódio ocorrera há dezessete anos e tinha caído em total esquecimento, ao menos de minha parte. Uma tarde, num povoado à beira da Belém-Brasília, eu ia pegar o ônibus, quando alguém me chamou. Olhei e vi, acenando para mim, um rapaz pobremente vestido, magro, com aparência doentia.
- O que é, moço?
- A senhora não se lembra de mim, fessora?
Olhei para ele, dei tratos à bola. Reconstituí num momento meus longos anos de sacerdócio, digo, de magistério. Tudo escuro.
- Não me lembro não, moço. Você me conhece? De onde? Foi meu aluno? Como se chama?
Para tantas perguntas, uma resposta lacônica:
- Eu sou "Nóis mudemo”, lembra?
Comecei a tremer.
- Sim, moço. Agora lembro, Como era mesmo seu nome?
- Lúcio - Lúcio Rodrigues Barbosa.
- O que aconteceu com você?
- O que aconteceu? Ah!, fessora! É mais fácil dizê o que não aconteceu. Comi o pão que o diabo amasso. E êta diabo bom de padaria! Fui garimpeiro, fui bóia fria, um "gato" me arrecadou e levou num caminhão pruma fazenda no meio da mata. Lá trabaiei como escravo, passei fome, fui baleado quando consegui fugi. Peguei tudo quanto é doença. Até na cadeia já fui para. Nóis ignorante às veis fais coisa sem querê fazé. A escola fais uma farta danada. Eu não devia de té saído daquele jeito, fessora, mas não aguentei as gozação da turma. Eu vi logo que nunca ia consegui fala direito. Ainda hoje não sei.
- Meu Deus!
Aquela revelação me virou pelo avesso. Foi demais para mim. Descontrolada, comecei a soluçar convulsivamente. Como eu podia ter sido tão burra e má? E abracei o rapaz, o que restava do rapaz, que me olhava atarantado. O ônibus buzinou com insistência.
- O rapaz afastou-me de si suavemente.
- Chora não, fessora! A senhora não tem curpa.
- Como? Eu não tenho culpa? Deus do céu!
Entrei no ônibus apinhado. Cem olhos eram cem flechas vingadoras apontadas para mim. O ônibus partiu. Pensei na minha sala de aula. Eu era uma assassina a caminho da guilhotina.
Hoje tenho raiva da gramática. Eu mudo, tu mudas, ele muda, nós mudamos, mudamos, mudaamoos, mudaaamooos... Super usada, mal usada, abusada, ela é uma guilhotina dentro da escola. A gramática faz gato e sapato da língua materna - a língua que a criança aprendeu com seus pais e irmãos e colegas - e se torna o terror dos alunos. Em vez de estimular e fazer crescer, comunicando, ela reprime e oprime, cobrando centenas de regrinhas estúpidas para aquela idade. E os lúcios da vida, os milhares de lúcios da periferia e do interior, barrados nas salas de aula: "Não é assim que se diz, menino!" Como se o professor quisesse dizer: "Você está errado! Os seu s pais estão errados! Seus irmãos e amigos e vizinhos estão errados! A certa sou eu! Imite-me! Copie-me! Fale como eu ! Você não seja você! Renegue suas raízes! Diminua-se! Desfigure-se! Fique no seu lugar! Seja uma sombra!"
E siga desarmado para o matadouro da vida...
Fidêncio Bogo |
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